Entre o lendário sauriano radioativo de setenta anos e o mais recente de Miyazaki, as notícias vindas das bilheterias dos EUA na última semana foram surpreendentes: em seu fim de semana de estreia, ‘Godzilla Minus One’ alcançou o terceiro lugar nas bilheterias, algo incomum em um filme com essas características e que compete cara a cara com ‘O Menino e a Garça’, o mais recente do Studio Ghibli. Com ambos nas posições mais altas nas bilheterias americanas Há uma situação de invasão japonesa temporária raramente vista.
Em sua segunda semana de lançamento nos Estados Unidos, ‘Godzilla Minus One’ já havia se tornado o filme japonês de maior bilheteria de todos os tempos no país. 17 milhões de dólares em receitas que rivalizam com os 23 que arrecadou no seu país de origem. O filme custou 15 milhões de dólares (ou até menos, se olharmos as declarações de seu diretor e roteirista Takashi Yamazaki), uma bagatela se compararmos com nada menos que 100 milhões que custam os filmes Monsterverse da Legendary.
Mas este filme é de uma espécie completamente diferente. Claro, Temos um lagarto de dimensões insanas pisoteando prédios (e pessoas) e causando estragos. Temos cenas tremendas de massas de cidadãos fugindo aterrorizados, presos nos escombros, fazendo esforços patéticos para pisar no acelerador dos seus pequenos veículos para escapar do poder devastador do monstro.
Mas não há luta livre com macacos gigantes, nem dragões de três cabeças, nem robôs criados como contramedida para dar tapas nas lutas contra Godzilla. ‘Godzilla Minus One’ deixa de lado toda a tradição do kaiju eiga apresentar catálogos mais ou menos coloridos de monstros de todos os tipos e ver suas origens. Talvez como uma homenagem às suas sete décadas de vida, o filme de Yamakazi se conecta com o primeiro filme da história do personagem, ‘Japão sob o terror do monstro’.
Os horrores da guerra
‘Godzilla Minus One’ não só forma uma dupla perfeita com o clássico de 1974 de Ishiro Honda pela sobriedade de sua abordagem, que deixa de fora convidados especiais e nos apresenta o confronto nu do monstro contra os humanos, com uma estética que até replica o desgastado celulóide e a cromaticidade ocre de outros tempos. É isso também retoma e fortalece novamente o componente metafórico de Godzillaque foi transformado em um artefato pop musculoso sem muita experiência por muito tempo.
E se em ‘Japão sob o terror do monstro’ Godzilla era uma encarnação escamosa da devastação atômica, do puro horror que significava para um país enfrentar o poder insondável das bombas atômicas, em ‘Minus One’ Godzilla continua investigando essas consequências com um filme que nos remete aos efeitos da Segunda Guerra Mundial, mas retratando-os ao nível do solo. Cidades devastadas, famílias desfeitas para sempre, traumas de ex-combatentes. Se Godzilla era a metáfora da bomba atômica há setenta anos, desta vez ele é a metáfora do olhar de mil metros. Ou seja, transtorno de estresse pós-traumático.
Dessa forma, ‘Minus One’ é uma réplica, uma variante do também soberbo ‘Shin Godzilla’, que usava o sáurio para falar tanto sobre a reação dos governos aos desastres coletivos quanto sobre as consequências físicas do terror atômico, tornando o gênero kaiju eiga num manifesto pós-nuclear da Nova Carne. Como Godzilla é inesgotável, ‘Minus One’ continua mergulhando no trauma e no ícone, tornando-se – como disse Jorge Loser em Espinof – em réplica perfeita, taciturna (e superior) de ‘Oppenheimer’
E tudo isso não significa que em ‘Godzilla Minus One’ não haja espetáculo: o tamanho colossal do monstro e sua agressividade absoluta (novamente Godzilla é o vilão do show, aqui não há compaixão possível por parte de nenhum dos lados ) nos dá achados visuais (e sonoros) tão devastadores quanto o uso dos raios que expele pelas mandíbulas, a fabulosa sequência do trem ou todas as sequências em alto mar. Um espetáculo, sim, mas que deixa um gosto na boca tão amargo e sombrio quanto qualquer grande filme de guerra.
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