Numa guinada que até recentemente parecia uma opção remota, a Telefónica voltará a ter o Estado entre os seus acionistas. Com luz verde para a SEPI, braço de investimento estatal, adquirir até 10% das suas ações, a principal empresa nacional de telecomunicações volta a ter participação pública após a sua privatização no final dos anos noventa.
Além de ser uma transação puramente financeira, esse movimento abre a cortina para uma nova era em que o jogo de poder não se limita às fronteiras nacionaismas se expande para um quadro global.
Já não se trata de incentivar a concorrência ou de controlar pelo menos parte de uma empresa crítica para a segurança nacional (é aquela que abastece o Governo ou o exército), mas sim de evitar influências de estados estrangeiros.
Se não fosse a entrada surpresa da STC (Saudi Telecom Company) no final do verão na participação acionária da Telefónica, cujo anúncio pegou Pallete em Los Angeles, isso dificilmente teria acontecido. Agora, porém, pode ser o início de uma tendência, à medida que a China reivindica o papel que merece e os petrodólares querem comprar influência global.
Um dos primeiros casos que fez soar algum alarme foi a venda do porto grego do Pireu à Cosco, uma gigante estatal chinesa, em 2016. A Cosco pagou 281 milhões de euros por 51% da empresa portuária e concordou em pagar outros 88 milhões. milhões em mais 16% cinco anos depois, além de realizar investimentos em sua infraestrutura. Foram também incluídos um dividendo a pagar ao Estado e uma comissão anual pela concessão.
Antes, o país grego já teve de se desfazer de outro activo como a gestão aeroportuária, embora tenha caído em mãos europeias, concretamente as da empresa alemã Fraport. Algumas operações enquadradas nas exigências impostas à Grécia no seu terceiro resgate.
Do capital saudita controlando a infraestrutura de telecomunicações à guerra de chips entre os EUA e a China
Isso foi apenas uma grande porta de entrada para produtos asiáticos na Europa e o prelúdio para uma rede estratégica de portos em todo o mundo. O Pireu, pela sua localização, no cruzamento entre a Europa, a Ásia e a África, foi considerado estratégico.
O Shanghai International Port Group, outro gigante chinês, mais tarde assumiu o controle do porto israelense de Haifa. O Sri Lanka, por sua vez, estava tão endividado com a China que lhe alugou o porto de Hambantota em 2017 por 99 anos em troca da redução dessa dívida. Segundo dados publicados pela BBC em 2021, diferentes empresas chinesas já controlam cerca de uma centena de portos em mais de sessenta países.
No caso dos países árabes, a relação com as telecomunicações tornou-se forte nos últimos anos. O exemplo da STC e da Telefónica não é um caso isolado. A Arábia Saudita é o segundo maior investidor não europeu entre as grandes empresas de telecomunicações.
No final de 2022, a Etisalat, gigante das telecomunicações de Abu Dhabi, aumentou a sua participação na Vodafone para 11% do capital, consolidando-se como o seu maior acionista. E revelou que estava a estudar um investimento na Vodacom, a divisão da empresa britânica de telecomunicações que agrupa os seus negócios em países africanos como a Tanzânia, a África do Sul e a República Democrática do Congo.
Há mais casos: a Mubadala, braço de investimentos de Abu Dhabi, fez um investimento significativo na operadora britânica Cityfibre. E uma subsidiária da STC, Tawal, fez investimentos significativos em infra-estruturas de telecomunicações na Bulgária, Eslovénia e Croácia.
O Governo espanhol quis evitar que tal caso se repetisse na Telefónica, que nas palavras de Nadia Calviño é “a empresa mais estratégica de Espanha”, e aprovou um investimento de cerca de 2.000 milhões de euros na empresa de telecomunicações. por uma questão de segurança nacional, para manter a soberania nas telecomunicações.
Segundo explicações do próprio Governo, tomou esta decisão para dar “estabilidade à empresa” e para “defender o interesse nacional”. Mencionou também a vontade de formar um “núcleo espanhol” no seu Conselho de Administração, aliando-se ao BBVA e ao Caixabank, que juntos representam cerca de 10% dos seus acionistas.
Embora o PP, principal partido da oposição, tenha criticado esta medida do Governo e a tenha qualificado de “populista”, outras vozes conservadoras a defenderam, como José María Lassalle, Secretário de Estado da Cultura durante o Governo Rajoy, que defendeu esta decisão enquanto criticando a privatização dos anos noventa.
Lassalle também aproveitou a oportunidade para lembrar que até mesmo um país liberal como os Estados Unidos está a mudar para controlar certos sectores estratégicos. Biden assinou uma ordem executiva neste verão para restringir os investimentos dos EUA em áreas estratégicas da China, como IA ou computação quântica. Uma medida que complementa outras medidas que visam limitar o acesso do gigante asiático à tecnologia americana, como os controlos às exportações de semicondutores avançados para a China.
Outro país europeu, a Alemanha, também tomou medidas semelhantes para limitar os investimentos estrangeiros em sectores estratégicos. Por exemplo, com a referida limitação da Cosco na sua participação num terminal no porto de Hamburgo. O objetivo, deixá-la abaixo de 25% do capital para evitar que tome decisões relevantes.
Há um ano, a Alemanha também proibiu a venda de duas das suas empresas de chips a outras empresas chinesas. Uma preocupação que vinha fermentando desde que a empresa chinesa Midea comprou a Kuka, empresa de robótica, em 2016, apesar dos esforços do governo alemão para impedir a operação, que foram em vão.
Há alguns anos, no meio de uma tendência de desregulamentação e privatização para que o Estado se abstivesse de participar nas grandes empresas nacionais, esta questão era seguramente um tabu. Hoje, com os blocos chinês e árabe, estes últimos desagregados em vários países que querem converter os seus petrodólares em influência global, a história começa a mudar.
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